quinta-feira, 24 de novembro de 2011

*Igreja Universal do Reino de Deus: o imperativo “Pare de sofrer” como fundamento de uma nova teodicéia


                                                    (Imgem: http://www.marciodesouza.com)

“Pare de Sofrer”,  slogan amplamente difundindo pela Igreja Universal põe em evidência o fundamento sobre o qual está estabelecido todo seu conteúdo doutrinário e, consequentemente, o meio pelo qual concorre no mercado religioso pelo “monopólio da gestão dos bens de salvação e do exercício legítimo do poder religioso” (Bourdieu, 2005, p. 57). O propósito  deste trabalho é mostrar que a  força do discurso iurdiano está na reiteração constante da  possibilidade de uma existência terrena livre de qualquer angústia, pondo em evidência, por conseguinte,  a proposta de uma nova teodicéia, na qual o sofrimento  deixa de ser uma realidade inevitável.
Para tentar fundamentar biblicamente os ensinamentos, torna-se necessária uma forma de interpretar as Escrituras distinta daquela feita pelo cristianismo tradicional. É o que explica Mariano (1996) ao afirmar que “era preciso substituir suas concepções teológicas que diziam que os verdadeiros cristãos seriam, se não materialmente pobres, radicalmente desinteressados de coisas e valores terrenos” ( p.27).  A demonização da pobreza é o melhor exemplo dessas novas concepções teológicas. O pobre não é mais o “bem-aventurado”, mas, ao contrário, é aquele que se encontra sob maldição, daí a necessidade primordial que tem de ser liberto.
Toda a construção do universo simbólico iurdiano evidencia uma luta aguerrida, cujo objetivo não é nada menos do que a hegemonia no mercado religioso. Para isto, lança mão de diversas estratégias.  Seu ponto de partida é a teologia da prosperidade. Não há nada mais atrativo para uma sociedade, que alia a possibilidade do consumo irrestrito à noção de felicidade, do que um discurso triunfalista fundado em promessas de ascensão econômica e social. Diversificando sua oferta através do uso de elementos de outras religiões, a IURD atrai pessoas de outros credos promovendo, dessa forma, uma identificação mais rápida com seu sistema simbólico (Bonfatti,1999; Campos, 1999). E, finalmente, tudo elaborado sob uma concepção dualista, Deus e diabo em guerra constante, que fornece a objetivação do mal que, agora conhecido, pode ser derrotado.
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* Resumo de trabalho apresentado no XI Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Link para o artigo completo: http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1307040879_ARQUIVO_IgrejaUniversaldoReinodeDeus-OimperativoParedeSofrecomofundamentodeumanovateodiceia.pdf

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A atual onda de protestos como consequência previsível da sociedade de risco



É provável que só tenhamos uma ideia mais precisa acerca do efervescente  momento histórico que estamos vivendo daqui a  alguns anos. No entanto, não é necessário esperar para saber  que não passaremos incólumes por ele. E é bom que não passemos,  afinal, as pessoas gritam por mudanças, exigem uma nova ordem, na qual, o futuro não se apresente como uma ameaça. Mais do que qualquer coisa, o que  desejam, especialmente os jovens,  são boas perspectivas, fazer planos e acreditar na possibilidade de sua concretização.
 Desse modo,  a onda de protestos que ocorre no mundo é uma reação, relativamente esperada,  diante de uma sociedade global mergulhada na incerteza.  Não por acaso, já que as crises das quais somos vítimas, crise do capitalismo, crise política, crise ambiental e outras,  são conseqüências  indesejadas, mas não imprevisíveis das escolhas que governos e indivíduos compartilharam no decorrer do processo de modernização. Poderíamos simplesmente culpar os líderes mundiais, e talvez eles sejam mesmo os principais responsáveis, todavia,  sem o nosso consentimento e, muitas vezes, apoio efetivo,  eles não conseguiriam  transformar a humanidade em  refém dos riscos que foram produzidos em nome do  progresso.  Como afirma Ulrich Beck (1997), nós criamos a sociedade de risco.
O sociólogo explica que o processo de modernização pode ser percebido em duas fases. A primeira seria o estágio do desenvolvimento industrial e caracteriza-se  pela prevalência da perspectiva dos benefícios do progresso. Os males eram percebidos  como  residuais e, por conseguinte,  menosprezados. Todavia, na análise de Beck, os resultados indesejados do desenvolvimento traçaram o contorno da segunda fase da modernização. Assim, ele afirma que,

[...] uma situação completamente diferente surge quando os perigos da sociedade industrial começam a dominar os debates e conflitos públicos, tanto políticos como privados. Nesse caso, as instituições da sociedade industrial tornam-se os produtores e legitimadores das ameaças que não conseguem controlar (1997:15-16).


A insegurança,  com a qual convivemos há algum tempo, cresce. As ameaças, cada vez mais, tornam-se reais. Poderíamos argumentar que tudo que ocorre sempre existiu, fome, guerras, tragédias ambientais. É verdade, mas o que diferencia a atual situação é que há uma tendência mais geral de empobrecimento. As vítimas não são mais apenas os países subdesenvolvidos e emergentes. Os países ricos, que sempre se pautaram pela esperança tola no crescimento infinito do mercado, percebem agora que, apesar dos indivíduos serem continuamente estimulados a consumir, a capacidade de consumo, mesmo por meio de endividamento, é menor do que a ganância capitalista que produz mais e mais.
Ainda é cedo para dizer que está se cumprindo o prognóstico marxiano de colapso do capitalismo. Afinal,  foram muitas crises e o sistema sempre mostrou uma capacidade impressionante de recuperação e re-ordenamento,  sem, contudo,  mudar suas bases estruturais. Entretanto, a tomada de consciência da população mundial, evidenciada nos protestos, sinaliza que ela não está mais disposta a aceitar passivamente  a tirania que pode se manifestar, explicitamente, em governos totalitaristas  ou,  de forma dissimulada,    por meio de  sistemas sociais injustos.  
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BECK,  Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da  modernização reflexiva In:
GIDDENS, A.; BECK, U.; LASH, S.  Modernização Reflexiva. Tradução de Magda Lopes. 2
reimpressão. São Paulo: Editora Unesp, 1997. p. 11-71.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Gisele Bündchen: a mulher-objeto e a limitada formação crítica dos brasileiros



A campanha da Hope (marca de lingerie),  estrelada pela Top Model  Gisele Bündchen,  tem sido alvo de diversos protestos. Não sem razão,  já que os comerciais reproduzem antigos estereótipos que pessoas mais esclarecidas, independente de gênero, lutam há tempos para derrubar.  Neles, a mulher brasileira é apresentada como um ser dotado de natural sensualidade e é incentivada a utilizar essa arma para resolver situações problemáticas com o esposo.
Qualquer pessoa que tenha senso crítico um pouco mais aguçado poderá perceber que, do início ao fim, os comerciais reforçam a ideia de que  a mulher não é só sensual, ela é também péssima motorista, financeiramente dependente do marido e limitada na sua capacidade argumentativa, daí basta tirar a roupa e todos seus problemas serão resolvidos.  Mais uma vez, a brasileira, especificamente,  é revestida de uma imagem altamente sexualizada.
Não sou da patrulha do politicamente correto, penso até que existe um certo exagero,  também não sou feminista militante. As causas que me movem são aquelas em favor da dignidade humana, portanto, sempre me colocarei em defesa dos grupos que sofrem qualquer tipo de opressão.  Por isso, me senti impelida a escrever este post, sobretudo depois de ler comentários de leitores no UOL sobre a notícia de que o governo pediu a suspensão das propagandas.
A maioria absoluta se posicionou contra o governo e a favor de que os comerciais continuem sendo veiculados. Todos têm direito de manifestar suas opiniões e devem ser respeitados, no entanto,  é difícil não ficar frustrada diante dos argumentos usados. Entre os mais  recorrentes está dizer que as mulheres que protestam são feias, invejosas, encalhadas, mal-amadas e uma série de outros adjetivos semelhantes. Diante de argumentos tão boçais que põem em evidência o atraso intelectual do povo brasileiro,  é difícil, como educadora, não ficar frustrada.  Mais grave ainda é ver que as mulheres, de modo geral, aprovam a campanha por achar que se trata de elogio, não conseguem perceber a  discriminação e o sexismo explícitos, sim, porque o que passam não é uma mensagem tácita ou subliminar.  
A conclusão que podemos tirar disso é que o Brasil ainda não conseguiu oferecer formação suficiente para que as pessoas desenvolvam algum nível de  capacidade crítico-reflexiva.  Só depois que os indivíduos estiverem devidamente esclarecidos é que podem escolher, com mais legitimidade, como vão se posicionar.  No caso das mulheres, particularmente,  elas podem até optar por serem tratadas como objetos, mas não sem antes saber que há outras escolhas possíveis. 

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Sobre a picaretagem acadêmica dos pseudo-intelectuais


Desde que abri este blog, em agosto de 2008, ele só me trouxe coisas positivas. Por meio deste espaço pude compartilhar ideias, pensamentos, meu modo de ver a sociedade e alguns textos resultantes do meu esforço acadêmico em busca de maturidade intelectual. O feedback que recebo de alguns leitores serve de estímulo para continuar. Embora  não tenha a disponibilidade de tempo que gostaria para atualizá-lo com mais freqüência,  estabeleci um compromisso comigo mesma de mantê-lo porque acredito que o conhecimento deve ser sempre socializado.
            Entretanto, no dia 24/08/2011, pela primeira vez  tive vontade de romper com meu propósito. Uma pessoa, que não quis se identificar, postou um comentário sobre o meu texto “Sociedade contemporânea: medo, individualização e a possibilidade de uma práxis comunicativa” me acusando de ter copiado o artigo sem dar os devidos créditos.  Não podem imaginar a raiva e a frustração que senti na hora. Apesar de todas as dificuldades e desafios  que uma vida acadêmica exige, sempre fiz questão de manter minha integridade, mas, infelizmente, por experiência própria descobri que nem todos conseguem.
            Logo após ler o comentário,  ciente que alguém havia se apropriado indevidamente do meu texto, iniciei uma pesquisa na web. Qual não foi minha surpresa ao descobrir um artigo que trazia partes exatamente iguais à minha publicação.  De imediato escrevi para os “autores” demonstrando minha indignação. Como se não bastasse também utilizaram parte do mesmo texto em outro artigo para o Congresso da  ALAS (Associação Latino-Americana de Sociologia) que ocorrerá na cidade de Recife este ano.  Com receio de que este não fosse um caso isolado, resolvi investigar se outros posts  meus  foram utilizados indevidamente. Fiquei surpresa a ver que além do texto citado, outros três foram publicados em blogs como se fossem de autoria daqueles que os copiaram. É muito fácil comprovar a verdadeira autoria, já que todos foram postados aqui com datas bem anteriores.
            Considero que o primeiro caso é o mais grave por dois motivos: primeiro porque os plagiadores são acadêmicos, o que lhes confere certa legitimidade,  e segundo porque publicaram em revista acadêmica.  Segue abaixo os links  das páginas onde postaram meus textos:  http://www.abraec.org/coniec/pdf/9.pdf  O  terceiro parágrafo da página 4, o segundo e o terceiro da página 5 e toda a discussão sobre Habermas a partir do terceiro parágrafo da página 9 são reproduções exatas do meu trabalho. Até mesmo as vírgulas que coloquei equivocadamente não foram corrigidas.  Essa parte sobre Habermas também foi reproduzida neste artigo http://www.sistemasmart.com.br/alas/arquivos/9_8_2011_13_12_12.pdf a partir da página 9.
Além desse texto, os outros três que foram apropriados de forma indevida são: “Sobre o poder simbólico em Pierre Bourdieu ”, o link do blog que o publicou é este  http://marceloevelin.wordpress.com/2010/08/20/sobre-poder-simbolico/#comment-114,  “Uma aprendizagem em Clarice Lispector”,  a pessoa que  o plagiou que atende pelo pseudônimo de Senhorita Baunilha, teve o trabalho apenas de mudar o título, segue o link: http://srta-baunilha.blogspot.com/2010/02/meu-fascinio-por-clarice-lispector_23.html?showComment=1314243315596#c7117759005895443560, e, por fim, o texto “Sobre a teoria da estruturação de Anthony Giddens” que foi publicado neste site: http://pt.scribd.com/doc/52211954/Sociologia
Quero deixar claro que não me importo que usem meus textos, afinal, a partir do momento que eu os torno disponíveis na net é para que todos tenham acesso a eles. Só que por uma questão de honestidade intelectual é preciso que os devidos créditos sejam dados. Apesar da angústia que ainda estou sentindo, pretendo continuar com o blog. Apenas desistirei dele quando os leitores desistirem de mim. Jamais passou pela minha cabeça que um dia usaria este espaço para escrever algo assim, mas acredito que não podemos ficar passivos diante de situações como essa. No mais, agradeço a todos que vêm aqui com objetivos distintos dessas pessoas que denunciei. 

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Sobre a metrópole e suas consequências para a vida mental em Georg Simmel



Segundo Simmel, as maiores dificuldades da vida moderna resultam das tensões existentes entre o  indivíduo, com sua vontade de  autonomia e emancipação,  e a força dos poderes supremos da sociedade com suas instituições, cuja função primordial é fornecer os padrões sócio-culturais que devem ser compartilhados por todos.  Nesse processo de luta pela liberdade, os acontecimentos do século XVIII tiveram um papel significativo, especialmente com a difusão dos valores iluministas. No século XIX, ocorreu outra importante mudança, pois,  além da liberdade do homem, houve uma promoção  da sua  individualidade, possibilitada pela intensificação da divisão do trabalho. Assim, estabeleceu-se uma ambiguidade: se por um lado a especialização fez com que o indivíduo se tornasse único e indispensável, por outro, o transformou em um sujeito que depende dos outros no cumprimento de seus respectivos papéis. 
A proposta de Simmel é tentar desvelar a forma como o indivíduo responde  diante do excesso de estímulos nervosos que recebe vivendo nesse mundo complexo, caracterizado por um dinamismo sem precedentes. Mais especificamente, o autor está interessado em compreender as defesas psicológicas que o  habitante da metrópole desenvolve para  lidar com os desafios de se viver numa grande cidade.  Uma assumida tendência à  intelectualização  e a  atitude blasé  definem a postura típica que o sujeito  assume como forma de reação perante os estímulos excessivos. Ao anunciar o domínio do intelecto na condução das relações humanas, Simmel aponta como principal prejuízo o distanciamento afetivo com o propósito  de preservar a sanidade psíquica.  O uso do dinheiro, elemento neutro, seria uma evidência desse distanciamento. Nesse sentido, as relações de troca, também acentuadas com a divisão do trabalho, prescindiriam das relações pessoais mais próximas, já que a mediação é feita por meio da moeda corrente. O mercado, portanto, apresenta-se como o lugar, por excelência,  das relações no mundo moderno.  O comportamento  blasé, resultante do mesmo processo,  caracterizaria a postura de indiferença do indivíduo frente aos inúmeros acontecimentos cotidianos. A recorrência desses acontecimentos torna-os banais, ou seja,  os indivíduos deixam de reagir a eles. Nesse contexto,  o sujeito perde sua capacidade de distinção entre as coisas que, em consequência, deixam de ser percebidas como significantes.
Além dos traços, acima descritos, vale ressaltar,  ainda,  que a vida mental desse indivíduo citadino caracteriza-se, também, por uma atitude de reserva que se manifesta por meio de um código tácito que impede que os limites da convivência sejam ultrapassados. Dessa maneira, evita-se os contatos indesejados assumindo uma atitude que pode ser interpretada como frieza.  Em última instância, a reserva pode vir à tona como repulsa mútua e/ou sentimento de ódio, produzindo, por conseguinte, conflitos.
Em síntese,  a vida na metrópole condicionaria a emergência de relações sociais marcadas pela indiferença, pela impessoalidade, pelo cálculo e por uma extrema individualização dos sujeitos. Simmel conclui falando sobre as inúmeras possibilidades da vida metropolitana, com toda  sua riqueza cultural e fertilidade de significados. Na metrópole, o indivíduo pode se ver livre  das amarras a que estão sujeitas as pessoas que vivem em pequenas comunidades.  Não obstante,  essa liberdade pode assumir a forma de solidão e anonimato.
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SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). fenômeno urbano. 4ª ed. Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1987.

domingo, 12 de junho de 2011

Ponderações sobre a existência em "A insustentável leveza do ser" de Milan Kundera





A leitura de "A insustentável leveza do ser" é uma experiência fascinante para aqueles que estão aptos a mergulhar na profundidade de todas as questões existenciais trazidas pelo autor. O enredo possui uma característica fundamental de todo bom texto, nos faz pensar. Assim, o fascínio que provoca não deve ser confundido com o prazer simples que um livro qualquer possa nos trazer. Aliás, aludindo à dicotomia, leveza/peso, que é o eixo da narrativa, digo que não é uma sensação de leveza que toma conta do leitor ao fim da história. Kundera nos convida para uma reflexão sobre a vida da qual seria bom que ninguém saísse ileso. A narrativa tem como ponto de partida o autor evocando a idéia do eterno retorno de Nietzsche. Não sem razão, já que é a filosofia nietzscheana que melhor traduz o espírito da época que vemos manifesto nos personagens, especialmente, Tomas e Sabina. O eterno retorno não deve ser entendido como o processo cíclico da história. É um mito e, por negação, pretende mostrar que a vida é uma só, essa é a sentença que pesa sobre os homens: “uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é como não viver nunca”. Vive-se sem saber se as decisões tomadas são realmente as melhores, não tivemos outras vidas para comparar. Não poderemos fazer certo da próxima vez, porque não haverá uma próxima vez. 

O romance tem como cenário a ocupação da Tchecoslováquia pela Rússia no ano de 1968, como contra-golpe à abertura democrática que fora proposta pelos intelectuais tchecos no movimento que ficou conhecido como a “ Primavera de Praga”. O sonho comunista tornou-se um pesadelo. É sob esse pano de fundo histórico que nos são apresentados Tomas, Tereza, Sabina, Franz e Simon. Tomas é um médico divorciado, cujo modo de vida consiste em não se apegar a nada. Seu objetivo é uma vida leve. Daí não sofrer com remorsos ao abrir mão da presença do filho, Simon, e de romper com seus pais que censuravam tal atitude. Entretanto, a leveza é ameaçada por Tereza, garçonete do interior, por quem, por uma série de casualidades sucessivas, acaba se apaixonando. Casa-se com Tereza, mas não abre mão de sua forma de viver, mantém casos extraconjugais, dentre os quais, destaca-se sua relação com Sabina, artista plástica que, assim como Tomas, não vê o mundo com o olhar dos crédulos. Na Suíça, lugar para o qual emigrou depois da ocupação russa, Sabina conhece Franz, mantém um caso com ele, mas não suporta o fato de que este possa, com seu amor, por abaixo a vida segura que construiu baseada numa visão cética da humanidade. Para Sabina, o que impera no mundo é o kitsch , a cegueira, a ilusão das ideologias que inculcam a possibilidade de um paraíso na terra; que negam a existência da “merda”. 

Tomas e Sabina representam todos aqueles que têm os olhos abertos para enxergar que os ideais defendidos, inúmeras vezes com derramamento de sangue, não passam de artifícios para enfeitar a vida. Essa é a função do Kitsch, servir como um arremedo estético. Eles tipificam o indivíduo que vive no mundo desencantado, enunciado por Max Weber. O mundo que superou, por meio da racionalidade, o pensamento religioso. Contudo, o esclarecimento também é mito, como afirmam Adorno e Horkheimer, portanto, as raízes do desencantamento são mais profundas e o resultado disso é a frustração e, por conseguinte, o pessimismo. Perde-se a fé em Deus, na ciência e o que resta é apenas o que podemos fazer com nossa breve trajetória aqui, que Kundera, com seu niilismo, condena à falta de qualquer sentido. 

Penso que, à semelhança das personagens, precisamos abrir os olhos, admitir que a vida é exatamente isso aí que nos está posto; a vida é sobretudo aquilo que se passa dentro de nós. Este é o lugar onde se desenrola o enredo particular da nossa existência. A aceitação da vida implica a aceitação da impossibilidade de construir um paraíso na terra. O paraíso não é mais o nosso lugar nesse mundo, fomos expulsos de lá, não podemos voltar sem que Deus nos permita, não podemos reconstruí-lo, pois é obra do Criador. Se o ser humano não fosse tão pretensioso, talvez pudesse compreender isso e, então, cessariam, ou pelo menos, diminuiriam muito os motivos para a guerra, para as lutas pelo poder e, como consequência, teríamos menos injustiças, menos desigualdades e mais respeito pelo outro. A ânsia pela vida nos faz viver menos. Acredito que é isto que Jesus quis dizer quando proferiu as seguintes palavras: “Aquele que perder sua vida, achá-la-á, mas aquele que ganhar a sua vida, perdê-la-á”. Ao contrário do que Kundera propõe em sua obra, é preciso ter  esperança. Enxergar e entender a vida  não significa curvar-se diante do imponderável. Ninguém foi capaz de dissecar tão bem a inutilidade das nossas preocupações como Cristo e, ao mesmo tempo, conferir sentido a nossa existência.
O autor-narrador afirma que a vida não é nada, não é sequer um esboço, já que não poderá ser passada a limpo, mas  creio  que a vida não se limita à contingência espaço-temporal na qual os céticos a encerram. Ouso sentenciar, baseada na fé que deposito nas palavras do Cristo, que estamos ensaiando. A verdadeira vida ainda está por começar. Sei que a história do cristianismo também é marcada pela tentação do Kitsch, seja no catolicismo, protestantismo, ou em qualquer outra vertente cristã. No entanto, precisamos fazer um esforço para  não confundir o que Jesus ensinou com muitas coisas que ensinam em nome d’Ele. Talvez seja justamente por causa dessa confusão que muitos de nós preferimos dar ouvidos à Nietzsche e seus porta-vozes. Ainda que eles tenham o que dizer, e não devamos ter  medo de ouvi-los, é necessário entendermos o limite de suas contribuições.  Conheci o niilismo, experimentei a vida sem esperança, não gostei. Prefiro a vida que tenho agora, ela é iluminada, não pela razão arrogante da modernidade, não pelo fanatismo religioso, mas pela consciência da graça. Entregar nossos fardos a Deus é o único modo de vivermos uma vida verdadeiramente leve.

sábado, 7 de maio de 2011

Sobre a intolerância dos pseudocristãos



Infelizmente, os líderes de igrejas que mais têm espaço na mídia são justamente aqueles capazes de deixar qualquer cristão, com o mínimo de bom senso, terrivelmente constrangido. Como se não bastasse  serem representantes de um evangelho completamente conformado  à lógica do mercado, porta-vozes de um discurso triunfalista que manifesta  desejo de  poder e riqueza,  ainda reivindicam para si, cegados pela arrogância,  o direito de legislar sobre a vida daqueles que não compartilham  a mesma fé.  A oposição irracional à união civil homoafetiva é um exemplo claro dessa pretensão de arbitrar sobre a vida de todos os indivíduos.
A lógica é simples: o que é uma verdade irrefutável para mim, não é para o outro, então não posso exigir que ele viva conforme a minha crença, do mesmo modo que ele também não pode exigir que eu viva de acordo com o que ele acredita.  Em nenhum de seus ensinamentos, Cristo nos outorga autoridade para impor o seu Evangelho, ao contrário, seu exemplo sempre foi de tolerância. Nas únicas vezes que manifestou indignação, de forma enfática, os alvos foram aqueles que falavam em nome de Deus, seguiam todas as regras, mas eram incapazes de serem compassivos.  
            O Brasil não é menos cristão porque reconhecemos o direito dos indivíduos de fazer o que querem  com suas vidas pessoais. O Brasil se torna menos cristão quando compactuamos com as injustiças e desigualdades sociais, quando toleramos a corrupção,  a desonestidade,  permitimos a crueldade.  Há causas realmente significativas que precisam do nosso engajamento. Não devemos nos esquecer que são por nossas próprias escolhas e ações que seremos responsabilizados. 

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Como Paris se tornou a capital do luxo e da moda segundo Walter Benjamin


  
Walter Benjamin procura mostrar, a partir de uma leitura marxiana, as transformações que ocorreram em Paris ao longo do século XIX, bem como os diferentes olhares que foram lançados sobre ela,  que a alçaram a posição de capital da moda e do luxo.  Seu objetivo é por em evidência o pano de fundo ideológico por trás de cada mudança. Nesse sentido, nada  aparece como algo aleatório no processo histórico, ao contrário,  tudo tinha uma razão de ser, servia a um propósito.
  A análise de Benjamin parte de uma primeira mudança significativa na arquitetura parisiense, a construção das galerias.  Além de serem o resultado de um período de grande prosperidade no comércio de têxteis, o modo como foram construídas só foi possível graças à utilização de um material inovador: o ferro.  Evocando  Balzac,  Benjamin explica que os edifícios das galerias, com seus corredores, com tetos de vidro para aproveitar a luz natural, e seus entablamentos feitos de mármores, representavam a arte a serviço do comércio. 
       O advento do ferro facilitou  um retorno à arquitetura da Grécia Antiga (neoclassicismo), mais precisamente,  uma releitura do estilo helênico com sua grandiosidade que tem por finalidade destacar a supremacia do Estado. Benjamin afirma que a  estética arquitetônica imperial, utilizada no Primeiro Império, foi um obstáculo para que  Napoleão III pudesse  perceber a natureza funcional do Estado como instrumento de dominação, ou seja, o Estado não como um fim em si mesmo.  Do mesmo modo que o imperador não tinha uma percepção crítica da função do Estado, os arquitetos também não foram capazes de perceber a importância do ferro como elemento fundamental dos processos de mudança que ganhavam contornos concretos na paisagem urbana.  
Uma das consequências mais imediatas da utilização do ferro foi afirmação do conceito de engenheiro, cuja contraposição era a figura do decorador.  Desse modo, a arquitetura, que outrora servia primordialmente a um propósito artístico, passa a ser concebida como construção de engenharia. A funcionalidade se sobrepõe à estética, indo em direção à razão instrumental que caracteriza a emergência do mundo dominado pelo capital.
Embora  a França estivesse caminhando a passos largos rumo à acentuação das diferenças de classes, no começo do século XIX a sociedade ainda vivia sob os resquícios utópicos da revolução de 1789. O filósofo Charles Fourier aparece como uma figura emblemática desse período. Tendo como modelo o funcionamento das máquinas, propôs, preconizando a utopia do socialismo libertário, a criação de falanstérios, ou seja, falanges organizadas de convivência, de  produção e consumo nas quais todos os membros tinham posição equivalente.  Por meio do falanstério, os homens seriam conduzidos a relações em que a moralidade deixa de ser necessária. Na Terra Prometida de Fourier não havia lugar para a repressão da burguesa. O filósofo viu nas galerias o paradigma arquitetônico do falanstério. Depois de servir a finalidades comerciais seriam transformadas em habitação. 
Assim como a arquitetura se liberta da tutela da arte graças ao ferro, a pintura se emancipa graças aos panoramas. O Panorama é um tipo de pintura mural elaborada num espaço circular em torno de uma plataforma de onde as pessoas podiam apreciar as imagens feitas a partir da tentativa de imitar a  natureza por meio do uso de alguns artifícios.   Segundo Benjamin, os panoramas eram a expressão de um novo  sentido de vida: o homem da cidade tenta trazer para perto de si o campo. No âmbito da literatura, a tendência se traduz numa série de esboços que tinham como objetivo primordial desenhar  um quadro da sociedade que servia como cenário de fundo dos panoramas. Conforme o autor, é a última vez que o operário é representado desligado de sua classe social.
Entre os nomes expressivos da pintura de panoramas, encontra-se Louis Daguerre. Em 1839, seu Panorama é destruído e ele anuncia, então, a invenção do daguerreótipo, instrumento precursor da máquina fotográfica. Embora o daguerreótipo exigisse que a pessoas ficassem imóveis cerca de trinta minutos para ter sua imagem reproduzida, representava um avanço em relação à pintura que exigia muito mais tempo. Ademais, trazia consigo o argumento de que retratava a realidade de forma mais fiel. Não por acaso, começou a se registrar paisagens que não eram comuns nas pinturas, como, por exemplo, as fotografias dos esgotos de Paris feitas por Felix  Nadar. Instaura-se, a partir de então, uma tensão entre artistas e fotógrafos.
Em 1855, na Exposição Universal de Paris, a fotografia ganhou uma mostra particular. Além de maior espaço no campo das artes, ela começa a ser percebida no seu papel  político. Conforme Antoine Wiertz,  ela tinha a missão de iluminar a pintura.  Vale ressaltar que Wiertz, pintor belga, sempre lançou mão da sua arte para militar em prol da independência do seu país. Assim, procurou retratar exemplos de heroísmo de pessoas que pudessem  ser modelos para a nação.
É particularmente significativa a perspectiva de Benjamin sobre as Exposições Universais. Para ele, elas cumpriam, no tempo em que não havia ainda a indústria  do entretenimento,  a função de enquadrar os operários. A expectativa dos organizadores, sob uma perspectiva sansionista,  era de que as classes trabalhadoras encontrassem divertimento ao mesmo tempo em que  participavam de uma festa de emancipação. O problema é que os sansionistas previram o desenvolvimento da economia mundial, mas não a luta de classes.
O fato é que as Exposições Universais se tornaram importantes eventos de exaltação e fortalecimento do capitalismo.  Por meio delas, houve uma superestimação do valor de troca da mercadoria em detrimento do seu valor de uso. O fetichismo alcança seu mais alto grau: a mercadoria é sacralizada. Para explicar esse processo, Benjamin recorre ao que Marx denominou de “caprichos teológicos da mercadoria”. Surge a specialité, ou seja, o produto como marca de distinção.  Para Benjamin, é na Exposição Universal de 1867 que a fantasmagoria da cultura  capitalista atinge seu auge. O império encontrava-se no ápice do seu poder e Paris afirmava-se como capital da moda e do luxo.
Entre as mudanças relevantes que traçaram os contornos da Paris do século de XIX,  Benjamin cita também a entrada do cidadão particular na história. Fato significativo que resultou, sobretudo, da Revolução de Julho ( 1830), cujo protagonista foi Luis Filipe.  Sob seu governo, houve, por um lado,  um alargamento da democracia, sendo que uma das principais medidas políticas  foi o reconhecimento do direito ao voto. Por outro lado, ganha força também o ideário liberal que, por sua vez,  calca-se na noção do ser humano como indivíduo.  Na sociedade industrial, o local de trabalho começa a ser visto em contraposição com o local em que se vive.  O lugar em que se vive é o interior,  cuja  função é manter a fantasmagoria, as ilusões. O local de trabalho deveria ser visto apenas como   complemento.
Em Baudelaire, Paris se torna objeto de poesia lírica, mas não de uma poesia regionalista, mas derivada do olhar de um homem alienado.  O alienado aqui é aquele que se coloca à parte. É o flâneur , aquele que vaga por toda cidade reparando tudo à sua volta. É uma espécie de rebelde que não encontra seu lugar, mesmo que busque refúgio na multidão. A Paris de Baudelaire encarna o espírito da modernidade e o flâneur  é uma figura típica desse tempo.
Por fim, Benjamin fala de George Haussmann e as grandes transformações que promoveu na arquitetura parisiense no  período em que fora prefeito. Com o aval do então imperador, Napoleão III, o prefeito promoveu uma série de expropriações, demoliu inúmeras moradias,  ruas e comércios a fim de reconstruir tudo tendo em vista uma cidade para a dominação. Seu objetivo era dificultar a ação dos rebeldes que, por seu turno, utilizavam como principal estratégia bélica a construção de barricadas. O prefeito enlargueceu as ruas e construiu bulevares. Os operários foram empurrados para o subúrbio.
A Paris de Haussmann, segundo Benjamin, é o lugar onde a centralidade do dinheiro se mostra de forma mais explícita, especialmente, por intermédio do jogo e da especulação fraudulenta. Ainda que  a ascensão de Napoleão III, presidente eleito em 1848, tornando-se imperador em 1851 por meio de um Golpe de Estado, tenha ocorrido com o apoio do clero, da burguesia e do operariado, a essa altura, os trabalhadores já haviam sido postos em escanteio. Assim, as esperanças de igualdade que impulsionaram a  Revolução de 1789, e revividas na ascensão de Napoleão III, foram completamente esmagadas pelo Império Liberal do ditador.  Novas insurreições aconteciam, mas o inimigo, agora, são os aliados de outros tempos.

Bibliografia:

BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX. In: FORTUNA, Carlos (org). Cidade, Cultura e Globalização: ensaios de Sociologia. Oeiras: Celta Editora, 1997

quinta-feira, 31 de março de 2011

Joaquim Nabuco: a escravidão como entrave ao progresso moral e econômico do Brasil



             Com seu mais renomado livro, O abolicionismo,  Joaquim Nabuco  traz para o centro do debate o problema da  escravidão,  não como um fenômeno entre outros, mas como fator elementar  na formação da sociedade brasileira. A obra representa o ápice da militância do autor contra  o escravagismo que, segundo ele, atravancava o progresso moral e  econômico do Brasil
O livro tem início com uma breve reconstrução histórica das posições contrárias à escravidão.  A primeira oposição nacional é direcionada ao tráfico e cristaliza-se na Lei Eusébio de Queiróz em 1950.  O discurso que sustenta essa primeira ação  era de que sem negros para serem negociados, o sistema escravocrata,  no decurso do tempo, enfraqueceria até ser extinto.  A essa primeira medida seguiu-se a resolução de que os traficantes deveriam ser deportados.  Segundo Nabuco, foram medidas menores para conter os ânimos dos partidários da abolição. Depois de um período de calmaria,  começa em 1866 um novo período de pressões pró-abolicionismo. Isto fez com que em 28 de setembro de 1871 fosse promulgada a Lei do Ventre Livre. Novamente o Estado conseguiu acalmar os ânimos e o período subseqüente foi de indiferença em relação à sorte dos escravos. Após oito anos de apatia,  um grupo de parlamentares, entre eles, o próprio Joaquim Nabuco, inicia uma campanha para acabar de vez com o  mal que, conforme as palavras do autor, degrada a nação toda. 
             O desafio maior para a causa abolicionista consistia no fato de que os escravos eram reféns dos seus senhores e, estes, por sua vez, dependiam completamente dos escravos.  O trabalho proposto  era o de tentar  conciliar os  dois grupos a fim de que ambos fossem preservados do melhor modo possível. O apelo dos abolicionistas não é dirigido aos cativos, justamente para evitar insurreições. Para Nabuco, a mudança poderia ocorrer sem os traumas provocados por um confronto direto, por isso, seu apelo é dirigido, sobretudo, às instituições política e religiosa  e seus representantes, em cujas mãos estava o poder para promulgar a abolição e fazer valer o direito à cidadania dos povos negros no Brasil. 
 É particularmente significativa a percepção de Nabuco em relação ao papel da  Igreja Católica.   Para ele, a Igreja, do modo como estava estabelecida,  com seu clero secular, caracterizava-se por uma total submissão aos interesses dos senhores de terra.  Entre as piores conseqüências desse catolicismo a serviço dos dominantes, está o esvaziamento do sentimento verdadeiramente religioso. Ora, se a Igreja, fiel representante de Deus, não via problema  nas atrocidades  cometidas contra os  escravos, se ela mesma se encarregou de tecer justificativas para a escravidão, dificilmente os escravagistas enfrentariam qualquer  dilema ético concernente aquela situação
Vale salientar que a preocupação de Nabuco vai além do abolicionismo, ele previa os problemas sociais que poderiam advir da libertação dos escravos se não fossem lhes dadas as condições necessárias para sobrevivência. Problemas que seriam enfrentados, primeiramente, pelos  contemplados pela Lei do Ventre Livre  que, apesar da alcunha de libertos, ficariam no cativeiro até completarem 21 anos, sendo, por conseguinte, negado-lhes o direito de receber uma formação  longe das senzalas.
Citando o discurso de Eusébio de Queiróz,  Nabuco põe em evidência  a primazia que sempre fora dada às questões econômicas em detrimento das questões morais. O tráfico só foi suprimido por causa da pressão da Inglaterra, pois seria mais vantajoso ter esse país como aliado do que como inimigo. Portanto, a persistência do sistema escravocrata deve-se, acima de tudo, a  um acordo tácito entre  as partes (políticos, religiosos, pessoas do povo)  de que esse era o caminho econômico mais viável para o  Brasil. Assim, a tentativa de persuasão de Joaquim Nabuco não restringiu-se  a denunciar a  imoralidade da escravidão, ele procurou enfatizar também o atraso econômico e o obstáculo ao progresso como conseqüências  desse  sistema.
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Referências Bibliográficas:
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. Brasília: Conselho Editorial, 2003.



sábado, 5 de fevereiro de 2011

Sobre o modo como nos relacionamos na contemporaneidade




“Viver é muito perigoso”, aforismo recorrente na fala de Riobaldo, principal personagem  da saga  Grande Sertão: veredas de João Guimarães Rosa, talvez faça hoje mais sentido do que em qualquer outra época.  Quem conhece a obra sabe que a sentença do autor não diz respeito apenas ao iminente perigo da morte, mas sobretudo aos riscos que estamos sujeitos por sermos seres primordialmente relacionais. Portanto, ao supor que  a vida,  hoje, é mais perigosa do  que em qualquer outro momento histórico,  não tenho em mente nenhuma das grandes ameaças a humanidade típicas do mundo contemporâneo, como armas de destruição em massa, catástrofes naturais decorrentes do aquecimento global e outros perigos que Ulrich Beck (1998) denomina de “riscos produzidos”, ou seja, efeitos colaterais dos avanços técnico-científicos.  Meu desejo é focar nos riscos derivados das profundas transformações que ocorrem no modo como nos relacionamos.
Vivemos no  tempo da liberdade individual, isso significa que cada um, de modo geral,  pode delinear sua própria  trajetória.  Não estamos mais sob a ditadura das identidades fixas: filho de peixe não será, necessariamente, peixinho, se cismar de ser outra coisa, não há determinismo biológico ou social capaz de se sobrepor a isso.  Os estudos de gênero estão aí para comprovar. Tudo é fluido, como afirma Bauman (2001), assim, não sabemos mais o que esperar uns dos outros. O que se quer agora pode não se querer mais daqui a um instante. O verbo “ser” que remete a uma condição essencial e, portanto, perene do sujeito,  é substituído pelo verbo “estar” que implica transitoriedade: “Eu não sou, eu estou”.  Aparentemente, as vantagens dessa nova forma de se colocar no mundo são muitas:  sexualidade vivida sem limites, não estar preso a relações insatisfatórias, experimentar tudo que tiver ao  alcance e uma série de outras coisas defendidas por aqueles que exaltam o relativo e condenam o absoluto. Contudo, não é preciso ser um especialista para perceber que embaixo dessa superfície cheia de cores, há uma enorme escuridão e, na escuridão, não vemos o caminho, não sabemos para onde ir, sentimos medo, ficamos paralisados. O  reino das possibilidades é, também, o reino da insegurança e, para sobreviver nele, é preciso, mais do que qualquer coisa,  de coragem.
            É arriscado acreditar nos outros,  investir em relacionamentos, criar expectativas.  Daí a palavra de ordem ser “curtir o momento”. O problema é que ainda não nos tornamos seres destituídos de sentimentos. Sempre vamos querer mais do que  “curtir o momento”.  Queremos relações duradouras, aprovação sincera, afeto incondicional. Assim, nos tornamos pessoas cada vez mais frustradas, desconfiadas e medrosas. Não sem razão temos um crescente número de indivíduos sofrendo de algum distúrbio psicológico: depressão, transtorno bipolar, paranóia, síndrome do pânico e muitos outros que poderiam ser elencados. Outra conseqüência, não menos importante, são as  concessões que alguns fazem  para não  ficarem sozinhos. A solidão talvez seja a mais assustadora das ameaças. Nesse sentido,  fica-se com qualquer pessoa apenas para não estar só e, com isso, paradoxalmente, estamos mais sós do que nunca.   Presença física não significa estar presente de fato
            O diagnóstico não é bom, mas também não é definitivo.  Podemos fazer escolhas diferentes destas que comumente nos são apresentadas.  Nadar contra a corrente requer de nós  um enorme esforço e, muitas vezes, vamos ficar cansados. Todavia, se simplesmente nos deixarmos levar, estaremos ajudando a construir uma sociedade onde predominam o fake, o superficial, o transitório. De forma concreta, fazer outras escolhas significa investir na dignidade humana; cultivar a sensibilidade para que jamais percamos  a capacidade de notar o sofrimento que causamos e de pedir perdão por isso; investir em relacionamentos saudáveis e, por fim,  dizer “não” a todos aqueles que insistem em nos tratar como mercadorias em estantes de supermercado.  
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BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona:
Paidós, 1998.