quinta-feira, 14 de maio de 2009

O Evangelho de Jesus Cristo segundo Saramago

"Porque tive fome e não me deste de comer; tive sede e não me deste de beber; estive nu e não me vestiste..."


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Em uma lista dos escritores que mais admiro, José Saramago ocupa, com certeza, um lugar significativo. Não só pelos seus enredos sensacionais, mas também pelo estilo peculiar na elaboração de seus textos. Ele é, no sentido mais exato, um artista das letras e usa todo esse talento para escrever o seu mais polêmico livro: O evangelho segundo Jesus Cristo.
A narrativa de Saramago expõe, não de forma explícita, um questionamento que é comum à grande parte dos céticos: a suposta incompatibilidade da existência de um Deus bom e onipotente com o mal e o sofrimento que imperam no mundo. Assim, não é bem uma postura ateísta que se revela no livro, mas um antiteísmo. O autor-narrador empenha-se em desconstruir a concepção judaico-cristã de um Deus de amor, cheio de misericórdia e graça. Nesse sentido, na imagem do Criador que ele apresenta destacam-se a arbitrariedade e o sadismo que, por sua vez, fizeram de seu próprio Filho uma vítima. A humanidade de Jesus é levada às últimas conseqüências. Para isto, o escritor explora, como tantos já fizeram, uma suposta relação marital de Cristo com Maria Madalena; propõe que o relacionamento de Jesus com a mãe, Maria, era permeado de conflitos e, sobretudo, descreve o Filho de Deus não como um “cordeiro mudo sendo levado ao matadouro”, mas como alguém que resistia em cumprir a vontade do Pai.
Érico Veríssimo sentencia, através de uma de suas personagens,  no livro "Olhai os lírios dos campos",  que nem o crente mais fervoroso preocupa-se tanto com idéia de Deus como o mais convicto dos ateus. Saramago, que assume seu ateísmo, parece não fugir à regra. Afinal, o fato de recontar, sob uma perspectiva própria, a biografia de Jesus é um indicativo de que ele, como todo bom ateu, não consegue, simplesmente, assumir uma posição de indiferença religiosa.
Não compartilho de modo algum com a idéia de Deus apresentada na obra de Saramago. Falta ao autor um conhecimento mais aprofundado da teologia bíblica. No entanto, a Igreja institucionalizada deveria fazer uma mea culpa, pois é exatamente essa a percepção que, no decorrer dos séculos, ela construiu e repassou com sua intolerância. Não me refiro ao catolicismo apenas, mas ao cristianismo, de modo geral. Ora, se a Igreja é a representante de Deus na terra, não é sem razão que sua imagem seja confundida com a imagem do próprio Deus. O que vemos é um cristianismo que caiu na tentação da luta pelo poder, que acumula riquezas, constrói catedrais luxuosas, gasta milhões em ostentação e afastou-se, há muito tempo, do verdadeiro sentido do Evangelho de Jesus.
Portanto, apesar do ateísmo (ou antiteísmo) de José Saramago, seu clamor por justiça, presente no evangelho por ele proposto e em outras obras suas; seu socialismo sincero; seu desejo, sempre evidente, de que a sociedade saia da escuridão, torne-se lúcida e trabalhe na construção de um mundo no qual o bem prevaleça de forma definitiva sobre o mal, são demonstrações categóricas de que ele está muito mais próximo do Reino dos céus do que boa parte dos supostos representantes de Jesus na terra.